O Rei e a plebeia – ou o estranho caso de Roberto Carlos e Anitta


Alain de Botton tem um novo livro – e é sobre o poder da arte como terapia. Sei que se você começou a ler este texto por causa do nome de Roberto Carlos no título – ou mesmo por causa do nome de Anitta – esta primeira frase pode parecer estranho.

 Fofoqueiros da internet mais desavisados (se é que existe alguém “avisado” nessa categoria) talvez até tenham entrado aqui achando que iam poder espalhar “a última aventura amorosa do Rei” – desatentos, como sempre, para o fato de que se eu fosse anunciar um relacionamento amoroso eu escreveria sobre “o caso de Roberto Carlos COM Anitta”. Mas eu divago, e está muito cedo para isso. Vamos em frente, pois já vou mostrar como Alain de Botton me inspirou a falar de RC – e de Anitta.

Como sempre, seu novo livro é uma espécie de “auto-ajuda”. Desde que escreveu “Como Proust pode mudar sua vida”, De Botton se especializou em mostrar como a chamada “alta cultura” tem tudo a ver com a nossa vida cotidiana, e pode inclusive nos ajudar a nos sairmos melhor nela. Numa breve recapitulação – para não cansar quem já leu muito sobre o escritor e filósofo aqui mesmo neste espaço (sim, sou fã declarado dele) -, depois disso vieram (cito apenas alguns) “As consolações da filosofia”, “A arte de viajar”, “Desejo de Status”, “Religião para Ateus” – e até mesmo um curioso volume chamado “Como pensar mais sobre sexo”. 

Sua última investida é no mundo da arte – a “grande arte”, um universo tão rico, que permite que De Botton navegue por todos os lugares, dos mais respeitados museus às obras de arquitetura mais esplendorosas (ou, como no caso de alguns dos exemplos de seu último livro, as mais bizarras).

“Art as therapy” ainda não foi lançado em português, mas as livrarias mais antenadas por aqui já tem o volume em suas estantes (ricamente ilustrado, ele custa cerca de R$ 120). 

o vi em exposição na mesa de uma das livrarias mais belas de São Paulo (que deve fechar até o ano que vem, em mais uma etapa do triste processo de extinção desses últimos templos dos nossos dias – um assunto que quero voltar a falar mais detalhadamente por aqui), não resisti: comprei-o imediatamente e li em menos de 48 horas – uma façanha, se você considerar a correria das minhas últimas semanas.

É o “bom e velho” Alain de Botton nos lembrando como as soluções para as mazelas da vida estão ao nosso redor – e tudo que a gente precisa é parar para olhá-las de uma maneira diferente. Resumindo, segundo ele, a arte deve servir para resolver problemas práticos, como nos ajudar a retomar a esperança, afinar nossa memória, balancear nossas emoções, colaborar no autoconhecimento, acolher na dor etc. Esse é o ponto de partida de “Art as therapy”, mas De Botton, claro, sempre vai além.

Na segunda metade do livro, ao discutir a relação entre gosto e dinheiro, ele faz a seguinte consideração, ao nos lembrar que geralmente nos sentimos incomodados ao ver como as pessoas gastam dinheiro com coisas (produtos) “erradas” – “feias”, de “mau gosto”, e até mesmo “nocivas” (lembrando que a tradução é minha, e, para variar, apressada):

“Existe um outro tipo de ‘errado’: uma sensação de que esses produtos não estão alinhados com o mais alto potencial da humanidade, que a paixão por um determinado tipo de comida, de hotel de lazer ou de programa de TV é um insulto ao que somos capazes como seres humanos. (…) Pode parecer maldoso apontar as preferências de pessoas decentes e possivelmente não privilegiadas com indignas. Temos medo de sermos vistos como elitistas ou esnobes, embora no fundo de nossos corações nós geralmente não achamos que somos uma coisa ou outra”.

Li isso no domingo pela manhã, logo depois que acordei de um sábado animado: gravei dois programas incríveis (com Rodrigo Lombardi e Paolla Oliveira, que você poderá assistir nos próximos dias) e saí direto do estúdio para outra gravação, a do especial de fim de ano de Roberto Carlos – um evento que marcava os 40 anos dessa presença do Rei na casa dos brasileiros todo fim de ano.

Estava exausto – já brinquei mais de uma vez que não estou fazendo um programa novo, mas sim um “novo esporte radical”. Mesmo assim, eu sempre arrumo energia para ver esse show. Nos últimos anos, tive a honra e o prazer de ser convidado algumas vezes para a gravação – e só não vou se estiver mesmo viajando a trabalho. Desta vez deu certo: e lá estava eu, sentado na primeira fila para ver Roberto Carlos… de novo!

Uma crítica fácil ao show é que ele se repete todos os anos. E a princípio parece isso mesmo. Tem “Emoções”? Tem! Tem “Detalhes”? Tem! Tem “Como é grande o meu amor por você”? Claro que tem! Mas tem também pequenos detalhes (sem trocadilho!) que tornam a apresentação diferente todos os anos – e que são esses detalhes que me divertem a cada vez que vou. E eu diria que eu nunca me diverti tanto como no sábado passado.

Espera aí! Eu? Divertindo-me num show do Roberto Carlos? E sobretudo num com a participação de Anitta? Foi aí que Alain de Botton veio me ajudar!

As novidades do show de Roberto este ano incluem Tiago Abravanel – fazendo um saudoso link com o passado do Rei, quando ele convivia pelas ruas do Rio de Janeiro com seu amigo Tim Maia (sabia?); uma brigada de DJs que remixaram grandes sucessos de RC (a versão para “O portão” ficou sensacional!), entre eles Mau Mau e Felipe Venâncio; Lulu Santos, claro, lembrando que Roberto também tem sangue de “blues”; e Anitta! Anitta gente! O que o Rei estava fazendo com Anitta no palco? Cantando “Show das poderosas”! Ou melhor, Anitta cantando “Poderosas” e Roberto cantando “Se você pensa” – num dueto que eu diria que foi o mais inspirado que eu vi nos últimos tempos nesses shows de fim de ano.

Na sua trajetória de mais de 50 anos, Roberto Carlos conquistou uma espécie de patamar que está acima de qualquer crítica e comentário. De ídolo pop, passou a ser cantor popular, para depois ser reconhecido como o grande compositor poeta que é – sobretudo graças ao aval dos tais “grandes nomes da MPB”, que a crítica mais medrosa sempre fica aguardando para ver o que eles acham para depois abraçar a mesma opinião. O problema é quando ele tenta sair do óbvio – e aí ele fica vulnerável.

 O caso de Anitta ilustra bem isso, ao levantar, entre os mais teimosos, a pergunta óbvia: “O que o Rei está fazendo com essa garota?”. A resposta é simples: Roberto está experimentando. E, pelo menos comigo, ganha pontos por isso.

Não sou tão ingênuo assim. É claro que a presença de Anitta é menos a realização de uma vontade de RC do que uma tentativa de atrair também um público jovem para a audiência do programa – que será exibido no dia 25 de dezembro. Mas que mal há nisso se o resultado é bom – ou, no mínimo, divertido? O roteiro foi bem esperto ao introduzir Anitta como a “verdadeira voz” de Tatá Werneck, que se oferece para cantar com Roberto – mas, como fica evidente, precisa ser dublada (e por Anitta!). Depois disso, veio “Olha” (“Olha”!), e em seguida o duelo “Poderosas x Se você pensa”. Foi o delírio!

Mas não posso deixar de imaginar que teve gente que torceu o nariz para o “mau gosto” de misturar os dois artistas – e é justamente aí que Alain de Botton vem nos ajudar com suas palavras sábias. Como ele nos lembra, não gostamos de pensar que somos “elitistas” ou “esnobes”. Mas ao mesmo tempo temos uma resistência natural em aceitar uma coisa diferente. (Acredite: estou vivendo a felicidade de apresentar um programa totalmente diferente e, além da ótima recepção que ele teve, não faltaram os que acharam que eu estava alegre demais na apresentação – como se alegria fosse algo a ser “moderado”… mas eu divago, e pela segunda vez…).

Gostei de Roberto e Anitta pelo simples fato de o Rei ter topado fazer uma coisa diferente – aliás, não só com ela, mas com os DJs, e mesmo com Lulu! E me lembrei de uma outra referência recente que toca elegantemente no assunto: a música “Crucify your mind”, do obscuro cantor e compositor americano Rodriguez, cuja história foi contada no excelente documentário “Searching for Sugar Man”, e Malik Bendjelloul (o Oscar deste ano nesta categoria foi para ele). 

Que eu saiba, o filme nunca teve um lançamento oficial no Brasil, mas eu insisto que você o confira de qualquer jeito (encomendei meu DVD numa loja virtual americana). Resumindo em uma linha, ele é uma espécie de “Bob Dylan que não aconteceu” – um cara megatalentoso, que gravou dois discos entre o final os anos 60 e começo dos 70, mas que por um mistério do pop, nunca estourou. A não ser na África do Sul, onde mais de 30 anos depois, dois fãs resolvem buscar pistas sobre o que tinha acontecido com esse “artista misterioso”.

Mais, não posso contar – para não tirar o prazer de quem ainda não assistiu. Mas posso dizer que a música de Rodriguez é incrível – um tesouro a ser (re)descoberto. E que em uma de suas canções ele diz o verso que usei lá em cima, no início do texto de hoje: “How much of you is repetition?”. 

Ou, em português: “O quanto de você é repetição?”. Bem, Roberto Carlos pode orgulhosamente dizer que ele está acima disso. Eu mesmo posso, modestamente, afirmar que estou fazendo um programa totalmente diferente do outro (sem perder a identidade principal da atração). E para todo mundo que se dedica a um trabalho criativo, eu deixaria aqui a humilde dica de cantar para si mesmo a música de Rodriguez.

Se você acha que eu preciso me estender mais em explicações, é sinal de que a sugestão não é para você…

O refrão nosso de cada dia: “I wonder”, Rodriguez

Quem viu “Searching for Sugar Man” sabe que é praticamente impossível escolher uma única música deste artista inacreditavelmente esquecido para representá-lo. Mas vou pegar carona no próprio documentário para escolher uma: foi “I wonder” que, como o filme mostra, entrou no inconsciente coletivo dos sul-africanos e fez dele um artista “mais famoso que Elvis”. Descubra Rodriguez com essa primeira canção – e depois vá em frente. Sendo sempre diferente…

Foto: TV Globo / Renato Rocha Miranda
Com G1

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